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O TRÁFICO PRIVILEGIADO E O DIREITO DO RÉU

26 de ago. 2020 - Brasil, Curitiba

A lei que visa coibir o tráfico de drogas, e prescreve medidas de prevenção ao uso ilegal além de normatizar a repressão em face da produção e venda, bem como delinear o que é crime no que se refere à matéria de tóxicos, bem como busca construir ações para atenção e reinserção social dos usuários e dependentes é a Lei 11.343/2006.

 

A norma foi elaborada em um momento em que se vislumbrava no Brasil e no mundo um aumento expressivo da ocorrência do crime e como decorrência, sua elaboração não abarcou as necessárias discussões para avaliar a ocorrência de exageros no texto legal.

Tal tese encontra suporte na medida em que existem dois grandes questionamentos no próprio STF a fim de mitigar os efeitos da lei em face das garantias constitucionais.

Nos seus 75 artigos a legislação traz algumas irregularidades graves e alguns avanços, mesmo que seja quase um paradoxo, vez que o § 2º do próprio artigo já foi palco da ADI 4.274/DF . Este artigo tem como objetivo especificamente tratar sobre o instituto (ou tese) do tráfico privilegiado, previsto no § 4º da Lei.

Embora pareça maçante, ou cansativo, é necessário compreender o que significa sob a ótica da lei o que é considerado tráfico de drogas:

1) Importar; 2) exportar; 3) remeter; 4) preparar; 5) produzir; 6) fabricar; 7) adquirir; 8) vender; 9) expor à venda; 10) oferecer; 11) ter em depósito; 12) transportar; 13) trazer consigo; 14) guardar; 15) prescrever; 16) ministrar; 17) entregar a consumo; ou ; 18) fornecer drogas; 19) semear; 20) cultivar; ou; 21) colher drogas; ou; 22) qualquer matéria prima que possibilite a criação de drogas.

A pena para quem prática uma das 22 (vinte e duas) ações é:

Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.

Se não bastasse a classificação penal, existem elementos que agravam sobremaneira o cumprimento da pena imposta ao réu que recebe a uma condenação com o título de traficante: a classificação de crime hediondo, ou seja, é considerado um crime sórdido, depravado, que provoca grande indignação moral, causando horror e repulsa, que ferem a dignidade humana, causando grande comoção e reprovação da sociedade.

Os crimes hediondos estão previstos na Lei Lei 8.072/1990, e impossibilitam anistia, graça e indulto, fiança, além de impor o cumprimento de pena em regime fechado, obrigando a progressão de regime em conformidade com as alterações do pacote anticrime, Lei nº 13.964/2019 (mas este tema é para um próximo artigo).

Necessário destacar que o tráfico de drogas e entorpecentes é previsto na Constituição Federal, no artigo 5º, XLIII:

XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura , o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem.

Por outro lado, o STF pacificou em 23 de junho de 2016 que a prática de tráfico privilegiado não pode ser considerado crime hediondo , logo, superada a limitação da hediondez, podemos avançar a análise pormenorizada do instituto.

O parágrafo 4º prevê requisitos que possibilita invocar uma auto atenuante que pode reduzir a pena do caput do artigo 33 de um sexto a dois terços (16,6% à 66,66%). Os requisitos são:

§ 4º Nos delitos definidos no caput e no § 1º deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa.

Sem muito esforço é possível identificar que o legislador permitiu o direito de redução da pena desde que cumpridas as imposições necessárias, ou seja, se o réu cumpre os requisitos do parágrafo 4º, conforme a atuação do advogado de defesa e demais condições do réu da defesa, deverá a pena ser reduzida de um sexto a dois terços.

Logo, estamos diante de uma causa de diminuição de pena ao contrário da ala positivista dos juristas brasileiros que entendem que tal benesse é um privilégio.

Por outro lado, os efeitos da causa de diminuição da pena apenas surtirão efeitos desde que o réu:

seja primário: isto é, não seja reincidente, sem condenação com trânsito em julgado (sem existência de recurso em análise de julgamento), antes da ocorrência de tráfico privilegiado;

possua bons antecedentes: não responda a outra ação penal (mesmo sem trânsito em julgado);

não esteja envolvido com organização criminosa: não esteja envolvido na "criminalidade", mesmo nunca tendo respondido a um processo criminal.

No campo formal é identificada tendência do STF tem firmado posição no sentido de que os requisitos são cumulativos e não alternativos , de modo que a ausência de qualquer um deles, desqualifica o réu para ser afetado pela causa de diminuição do parágrafo 4º.

Neste ponto, necessário reforçar que embora o STF aponte o norte para a necessidade de todos os requisitos, uma parcela significativa de magistrados ad quo não tem considerado todos os requisitos de forma cumulada, de modo que o não preenchimento de algum deles não impede a aplicação do critério para diminuição da pena (tráfico privilegiado).

Logo, transpondo as colocações para o tema principal, o instituto do tráfico privilegiado é um privilégio possível para o réu que se viu envolto como traficante ocasional, não sendo um “traficante profissional” ou contumaz na prática delituosa.

De modo que o voto do ministro Gilmar Mendes em sua análise da ADI 4.274/DF, apontou que:

Não há dúvida, não estamos diante de um tipo penal novo em relação ao crime de tráfico de drogas. Nem mesmo de um tipo derivado se trata. Ninguém comete o crime do art. 33, § 4º. Comete-se o crime do art. 33, caput, ou de seu § 1º, ainda que, na terceira fase da aplicação da pena, o agente seja beneficiado pela diminuição de pena prevista no § 4º. Não há um tipo penal derivado, mas a incidência de uma causa de diminuição de pena sobre o tipo penal básico.

Não há de se falar na invocação da causa de diminuição de pena para os casos dos transportadores de drogas e entorpecentes, os vulgarmente chamados de “mulas”, pois em conformidade com jurisprudência do STJ, é nítido o envolvimento com organização criminosa que prática delito hediondo.

A doutrina aponta que a causa de dimunuição de pena prevista no crime de tráfico de drogas para o primário de bons antecedentes é:

Causa de diminuição de pena: cuida-se de norma inédita, visando à redução da punição do traficante de primeira viagem, o que merece aplauso. Portanto, aquele que cometer o delito previsto no art. 33, caput ou § 1.º, se for primário (indivíduo que não é reincidente, vale dizer, não cometeu outro delito, após ter sido definitivamente condenado anteriormente por crime anterior, no prazo de cinco anos, conforme arts. 63 e 64 do Código Penal) e tiver bons antecedentes (sujeito que não ostenta condenações definitivas anteriores), não se dedicando às atividades criminosas, nem integrando organização criminosa, pode valer-se de pena mais branda.

Outrossim, necessário apontar que a conceituação ou caracterização do crime de tráfico de drogas ou entorpecentes se fazem necessárias a existência da flagrância do ato mínimo de comercio, que demonstre de forma inequívoca a prática criminosa da pessoa.

De modo que além da apreensão de drogas é imprescindível evidências que esta pessoa atue como traficante, como a apreensão de celulares, somas de dinheiro de pequeno valor, cadernos de registro ou qualquer outro elemento que registre a venda para outros usuários ou distribuidores (traficantes), apetrechos para fracionamento, distribuição ou qualquer outro elemento coletado em provas de investigação prévia que são comuns àqueles que são praticantes da ação delitiva de tráfico de drogas e entorpecentes.

Por outro lado também necessário frisar que o crime de tráfico de drogas e entorpecentes é concretizado com a realização de várias ações, as quais a lei especial enumera, logo, será improvável que eventual apreensão de drogas em razoável quantidade seja apontada como uso próprio na tentativa de desqualificação do crime de tráfico para o tráfico privilegiado ou para a figura do usuário de drogas, já que a própria jurisprudência aponta que a quantidade total pode sim delinear os traços da traficância.

De sorte que existindo qualquer elemento que leve o julgador à questionar se o réu é traficante nato (reincidente, eventual), traficante novato (de bons antecedentes e primário) ou usuário dependente, em se tratando do conjunto de provas do processo com provas frágeis, aliada à existência de pequena quantidade de drogas, bem como a suposta prisão ou apreensão se deu, se tem a existência de dúvidas quanto à conduta delituosa do réu, o que impõe a necessidade de considerar que a dúvida deve favorecer a quem está sendo imposta a prática criminosa devendo se passar à desclassificação do crime capitulado no caput do artigo 33 para o previsto no § 4º, isso quando não deve haver a desqualificação para o artigo 28 da mesma Lei.

RESULTADOS PRÁTICOS DA DESCLASSIFICAÇÃO DO CRIME DE TRÁFICO DE DROGAS

O uso da causa de diminuição prevista no parágrafo 4º beneficia o réu de forma significativa quando da elaboração de eventual pena condenatória, vez que por ocasião da elaboração da dosimetria da pena ter como resultado (após a aplicação da fração variável de 1/6 à 2/3) uma pena de valor menor do que aquele previsto como mínima para o crime de tráfico de drogas e entorpecentes, caput do artigo 33, que prevê cinco anos.

Neste diapasão, há a possibilidade de uma pena mínima resultar em um ano e oito meses ao invés de receber uma pena de cinco anos, o que possibilita que o regime inicial de cumprimento da pena seja o regime semi-aberto.

Outro ponto que merece destaque é o fato de que o Senado Federal suspendeu a execução do seguinte trecho do parágrafo 4º: vedada a conversão em penas restritivas de direitos por força da declaração de inconstitucionalidade definitiva do Supremo Tribunal Federal nos autos do Habeas Corpus nº 97.256/RS.

De modo que o cumprimento no exemplo supra poderá inclusive ser realizado por meio da imposição da restrição de direitos.

Pode-se concluir afirmando que a modalidade de tráfico privilegiado constitui importante causa de diminuição de pena que atende em primeiro lugar uma politica de gestão prisional, já que conforme dados do monitor de presídios do CNJ, mais de 28% das pessoas presas são oriundas de crimes relacionados com o tráfico de drogas e entorpecentes e em segundo lugar houve uma preocupação do legislador em resguardar o réu primário que se envolveu em atividades de tráfico e possui bons antecedentes e é primário para que responda pelo seu crime de uma forma mais amena e assim se conscientize e não volte mais a praticar atos delituosos, contudo, para que isso se concretize o Estado, sociedade e família devem cumprir suas partes.

REFERENCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

_____. Supremo Tribunal Federal. ADI nº 4.274/DF. Relator: Min. Ayres Britto. Brasília, DF, 23 de novembro de 2011.

_____. Supremo Tribunal Federal. RHC nº 110.084/DF. Relator: Min. Luiz Fux. 1ª Turma. Brasília, DF, 29 de novembro de 2011.

_____. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1.501.704/SP. Relator: Min. Reynaldo Soares da Fonseca. 5ª Seção. Brasília, DF, 02 de maio de 2016.

_____. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1.507.986/SP. Relator: Min. Nefi Cordeiro. 6ª Turma. Brasília, DF, 11 de maio de 2017.

_____. Superior Tribunal de Justiça. EREsp 1.431.091/SP. Relator: Min. Felix Fischer. 1ª Seção. Brasília, DF, 01 de fevereiro de 2017.

NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 8ª Ed. Rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 316.

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Rafael Pinto Ribeiro

Criminalista por paixão, Constitucionalista por convicção. Pesquisador entusiasta e esperançoso de que o conhecimento ainda pode trazer liberdade para a pessoa humana.

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